sábado, 27 de novembro de 2010

Fonte - 3- Letra da Musica a Triste Partida - Composição: Patativa do Assaré


Fonte - 3- Letra da Musica a Triste Partida - Composição: Patativa do Assaré

Embora seja de domínio público que Patativa do Assaré escreva guardando a sertaneja forma de falar, Triste partida musicada por Luiz Gonzaga sofreu modificações em relação ao que se pode encontrar na versão publicada em Cante lá que eu canto cá.[1]

Uma hipótese é de que o sanfoneiro tenha suavizado o sotaque nordestino e apelado para formas mais próximas da língua geral do país, como uma maneira de romper com um regionalismo mais acentuado de Patativa.

Outra é de que, para ajustar ao compasso do ritmo musical e ao seu estilo tivesse Luiz Gonzaga que modificar alguns versos. Encontra-se, de fato, no texto, elementos que fundamentam uma e outra hipótese. Neste TCC utiliza-se a versão firmada na discografia de Luiz Gonzaga em razão de ter sido esta a mais difundida e se prestar a contento para os objetivos desta reflexão, voltadas para a análise do conteúdo socioeconômico do poema. Reconhece-se a importância de se efetuar estudos sobre a recepção e apropriação da obra de Patativa do Assaré pelos músicos e pelo público em geral. Para isso, deve-se recorrer aos escritos originais, comparando-o com as versões musicadas ou publicadas em outros veículos de expressão.

Para guardar, porém a fidelidade ao texto original escrito, em anexo, apresentamos um quadro comparativo das duas versões. Em tom de lamento, onde se repetem como estribilho as exclamações de apelo religioso (Meu Deus, meu Deus!) e de dor física (ai, ai, ai, ai), a letra é composta de estrofes, de quatro em quatro versos, em que se alternam os estribilhos acima, no fim de cada estrofe. O investimento na noção de tempo se expressa esgotando-se um calendário agrícola (de Setembro a Março), em que as alternativas de esperança vão sendo tentadas e conduzindo a uma situação de crise, culminando na decisão por uma viagem. Composto em 19 estrofes, a letra abre o raciocínio e tenta demonstrar e analisar a injustiça social que não se resolve com a mudança de lugar.

Meu Deus, meu Deus, Setembro passou Outubro e novembro,

Já tamo em dezembro, Meu Deus, que é de nós.

Meu Deus, meu Deus, Assim fala o pobre,

Do seco nordeste.Com medo da peste, da fome feroz

Ai, ai, ai, ai.

O poema de PATATIVA DO ASSARÉ[2] é pleno de esperança, no começo, e revela, liricamente, as diversas formas de resistência do nordestino submetido à seca e às condições econômicas e sociais precárias. O início do poema, como se lê acima, começa com um pressentimento de medo das doenças e da fome que podem advir caso não se concretize o período de chuvas esperado. De dentro do medo, a personagem recorre a adivinhações aprendidas no seu meio cultural. Conhecimentos construídos sobre mitos vão ser demolidos por uma racionalidade experimentada, vivida. Ali começa a primeira perda: o abalo da crença em um conhecimento popular aprendido pela tradição local, baseado em números cabalísticos (treze) ou no calendário regular (representado pela festa do Natal). A lógica metafísica vai sucumbir às transformações climáticas.

A treze do mês / Ele fez experiência/ Perdeu sua crença/Nas pedras de sal,

Meu Deus, meu Deus,

Mas noutra esperança,/ Com gosto se agarra,/Pensando na barra,/Do alegre natal,

Ai, ai, ai, ai.

No verso acima se misturam prática popular baseada na fé com o teste (experiência, característico da prática científica). Frustrados os dois, outro passo é dado na tentativa de reconhecer melhor, no calendário de festas, a chegada de chuva. Nada de chuva se confirma, e outros sinais da natureza se apresentam indicando que o verão será rigoroso.

Rompeu-se o natal/Porém barra não veio/O sol bem vermeio/Nasceu muito além,

Meu Deus, meu Deus,

Na copa da mata/Buzina a cigarra,/Ninguém vê a barra /Pois barra não tem

Ai, ai, ai, ai.

A vermelhidão do sol é prenúncio de tempos difíceis, de um inferno se aproximando. A constatação de salvação, até aqui, seria pelo único e incontestável sinal da natureza, a queda de chuva, pela terra molhada, pela possibilidade concreta de poder plantar, criar, colher. Uma inflexão é introduzida na construção lógica do camponês. Esgotado o calendário e as crenças, o vaticínio é de castigo. Vale a pena chamar a atenção para o termo nortista, usual no sul para designar os nordestinos.

Sem chuva na terra/Descamba janeiro,/Depois fevereiro,/E o mesmo verão,

Meu Deus, meu Deus

Entonce o nortista/Pensando consigo/Diz, isto é castigo/Não chove mais não

Ai, ai, ai, ai.

Não vindo chuva por estes sinais conhecidos dos tempos, o homem volta-se para o sobrenatural. Apela para São José que também não lhe responde, e aqui se anuncia uma perda importante, a da fé guardada para momentos de necessidade extrema. Mais do que castigo, a seca transforma-se em condenação... No Nordeste, o milho plantado no dia de São José, é colhido no mês de Junho, comemorando-se a colheita por ocasião das festas de São João e São Pedro. O curto ciclo do milho representa a atividade agrícola em toda a sua força...

Apela prá março/Qué é o mês preferido/Do santo querido/Senhor São José

Meu Deus, meu Deus,

Mas nada de chuva/Tá tudo sem jeito/Lhe foge do peito/O resto da fé

Ai, ai, ai, ai.

Não havendo solução nos planos anteriores, o camponês é obrigado a uma estratégia forçada, vendendo seus meios de produção. A estratégia é de sobrevivência modificando a forma de ganhar a vida, ou a morte... São Paulo é, no poema, representação da cidade grande, caudatária dos trabalhadores deserdados de seus fazeres nos seus locais de origem. A passagem do trabalho autônomo para trabalho assalariado é, aqui, bem representada pela criação do trabalhador que não terá senão a sua força de trabalho para vender. São Paulo, a cidade, é trocado pelo rural, pelo jegue, cavalo, galo... Na impossibilidade de resolver o problema da vida no lugar, a saída é tomar outro caminho, outro rumo, outra trilha (tria).

Agora pensando/Ele segue outra tria/Chamando a famia/Começa a dizer,

Meu Deus, meu Deus,

Eu vendo meu burro,/Meu jegue e o cavalo,/Nós vamo a São Paulo/Viver ou morrer

Ai, ai, ai, ai.

No início, a saída é pensada como um movimento temporário, com uma perspectiva de retorno. As perdas seriam algumas, mas não muitas, pois recuperáveis. A consciência de estar indo para terras alheias, para ser estrangeiro, gera o desconforto e o desejo de volta para o lugar de origem. Por pior que seja, a construção é de um deixar de ser para continuar sendo...

Nós vamo à São Paulo/Que a coisa tá feia/Por terras aleia/Nós vamos vagar

Meu Deus, meu Deus

Se o nosso destino/Não for tão mesquinho/Cá e pro mesmo cantinho/Nós torna a voltar

Ai, ai, ai, ai.

O desfazer-se das coisas nos momentos de crise é mais difícil porque ocorre em condições desfavoráveis. Alguém sempre lucra com a miséria alheia. Seus bens passam para outro por valor inferior ao que vale. Embora de maneira tímida, o autor expressa uma revolta de caráter social, manifestando o caráter de classe, onde mais que a seca como fenômeno físico, a exploração econômica se manifesta. A venda em si mesmo não é tão dolorosa quanto à consciência de estar sendo explorado em seu momento de desgraça. O verso denuncia a imprevidência e a falta de política para ocasiões como esta.

E vende seu burro/Jumento e o cavalo/Inté mesmo o galo/Venderam também

Meu Deus, meu Deus,

Pois logo aparece/Feliz fazendeiro/Por pouco dinheiro/Lhe compra o que tem

Ai, ai, ai, ai.

O primeiro sinal da ida para a cidade, para a modernidade é o caminhão, onde ele joga a família, e é expulso da terra natal, da terra onde nasceu, onde construiu sua história. Ficam para trás seu passado e dos seus filhos, parentes, amigos... A família não sobe no caminhão, mas é jogada. O dia da partida, triste dia, dá nome ao poema: Triste partida. A seca assume o papel de flagelo, de bicho feroz, faminto (que tudo devora) e implacável, expulsando todo o grupo de seu local de origem. Retificada como animal voraz, a seca é representada ora como fenômeno natural, ora social.

Em um caminhão/Ele joga a famia/Chegou o triste dia/Já vai viajar

Meu Deus, meu Deus,

A seca terrível/Que tudo devora/Lhe bota pra fora/Da terra natal

Ai, ai, ai, ai.

A consciência da perda bate depois da saída. Na estrada, na sensação de velocidade do carro no topo da serra, distanciando-se do chão... A estrofe é construída demonstrando a transição de situações e a consciência que se avoluma justamente neste momento. O afastar-se da terra é representada praticamente como uma morte, em que a família muda de plano, saindo de uma situação para outra...

O carro já corre/No topo da serra/Oiando prá terra/Seu berço, seu lar/

Meu Deus, meu Deus

Aquele nortista/Partido de pena/De longe acena/Adeus meu lugar

Ai, ai, ai, ai.

A consciência da perda se aprofunda nos dias que se passam. Não só o pai perde, mas toda a família. E esta mesma consciência ganha concretude quando eles começam a fazer o rol de perdas...

No dia seguinte/Já tudo enfadado/E o carro embalado/Veloz a correr

Meu Deus, meu Deus

Tão triste, coitado, /Falando saudoso/Com seu fio choroso/Exclama a dizer

Ai, ai, ai, ai.

O que representará para as crianças a perda dos animais de estimação, do contato afetuoso com cada um deles? Revivendo o cotidiano camponês, a nostalgia é detalhada em gestos simples, porém muito reais.

De pena e saudade/Papai sei que morro/Meu pobre cachorro/Quem dá de comer?

Meu Deus, meu Deus,

Já outro pergunta/ Mãezinha, e meu gado1?/Com fome, sem trato/Mimi vai morrer

Ai, ai, ai, ai.

O que representará a perda de uma planta querida, e uma boneca para uma menina de interior? A cultura camponesa não é – ou não era – a do consumo, a do descarte, mas a da manutenção dos bens, do trato, da conservação. A representação é a do afeto mantido pelos objetos que significam as construções da cultura familiar, doméstica, estática ou de mobilidade espacial reduzida.

E a linda pequena, /Tremendo de medo,/ "Mamãe meus brinquedo/Meu pé de fulô?"

Meu Deus, meu Deus

Coitado, ele seca/E minha boneca/Também lá ficou

Ai, ai, ai, ai.

As perdas são ameaças ao futuro incerto que o pai é obrigado a pensar e decidir...

E assim vão deixando/Com choro e gemido/Do berço querido/ Céu lindo e azul

Meu Deus, meu Deus

O pai, pesaroso/Nos fio pensando/E o carro rodando/Na estrada do Sul

Ai, ai, ai, ai.

A consciência da perda se dá, portanto, no caminho. O local de chegada é o de se dar outro jeito, com as dificuldades de enfrentar a pessoas estranhas, a novos costumes, novas situações, novo patrão...

Chegaram em São Paulo/Sem cobre, quebrado/E o pobre acanhado/procura um patrão,/

Meu Deus, meu Deus

Só vê cara estranha/De estranha gente/Tudo é diferente/Do caro torrão

Ai, ai, ai, ai.

O valor do trabalho redentor é a esperança na qual se joga o nordestino/nortista, no novo enfrentamento a que se dispõe. Movido pela perspectiva da volta, aprofunda suas dívidas e suas ligações com o novo lugar... O tempo aparece como inexorável elemento de fixação, de criação de novas raízes, embora saudoso das anteriores:

Trabaia dois ano,/Três ano e mais anos,/E sempre nos prano,/De um dia vortar

Meu Deus, meu Deus

Mas nunca ele pode/ Só vive devendo/E assim vai sofrendo/É sofrer sem parar

Ai, ai, ai, ai.

Mas alimenta o sonho de volta, atento às notícias do sertão e a novas alternativas possíveis...

Se arguma notícia/Das banda do norte/Tem ele por sorte/O gosto de ouvir

Meu Deus, meu Deus

Lhe bate no peito/Saudade lhe molho/E as águas nos óio/ Começa a cair

Ai, ai, ai, ai.

O tempo longo e as novas condições sinalizam para um caminho sem volta e a distância do local de origem toma uma dimensão cada vez mais concreta...

Do mundo afastado/Ali vive preso/Sofrendo o desprezo/Devendo ao patrão

Meu Deus, meu Deus

O tempo rolando/Vai dia e vem dia/E aquela famia/Não vorta mais não

Ai, ai, ai, ai.

A perda definitiva da terra e da identidade se materializa na impossibilidade de voltar. Materializa-se também na consciência da perda da liberdade, do domínio sobre o próprio tempo.

Distante da terra/Tão seca mas boa/Exposto à garoa/A lama e o pau,

Meu Deus, meu Deus

Faz pena o nortista/Tão forte, tão bravo/Viver como escravo/

No Norte e no Sul

Ai, ai, ai, ai.

O ser camponês é um ser de baixa mobilidade social, como explicitado em outro

Momento[3].

Poderíamos falar de números, mas preferimos falar de sentimentos. Do sentimento de partida quando a única opção a fazer é a estrada em busca de outro lugar. Encontrar, no cancioneiro popular, versos sobre a vida de retirantes por causa da seca nordestina pode parecer lugar comum, mas uma análise detalhada de cada verso pode nos dizer muito do que os leva a esta mobilidade e o que se perde com ela. O Nordestino é praticamente sinônimo de viajante, como se uma segunda natureza tivesse, depois da de ser humano.

A importância do lugar como referência, como acúmulo de experiências vividas por pessoas que amalgamaram a cultura, que deram significados aos nomes das ruas, das praças, dos objetos, das fachadas das casas, dos jardins, dos quintais, tudo isso fica guardado na memória, mas os sinais dessas coisas no espaço são perdidos com a ausência forçada. O homem tem o estranho hábito de viver mais do que o seu tempo biológico, de atravessar o tempo na memória dos seus parentes, patrícios, vizinhos.

O homem guarda nos lugares sua existência, coleciona e celebra tristezas e alegrias em um armário que é maior do que sua casa, sua rua, seu bairro, sua cidade. E não abre mão, sem sofrer, de sua casa, seu bairro, sua cidade. Viver longe dos seus por necessidade, abandonar os seus por necessidade é uma ruptura dolorosa. E o êxodo traz, no fundo, essa marca do se deixar diluir nas cidades, nas ruas, nos caminhos, nas memórias. O camponês se faz em tessituras de relações primárias. Ele conhece e se relaciona com o seu vizinho, o seu compadre, o comerciante. Ele cria laços pessoais e os honra com a palavra e com os gestos de sua cultura, onde indivíduos, atores, papéis e personagens se confundem. A cidade grande impõe outro tipo de relação em que as pessoas são submetidas/reduzidas aos seus papéis. Hoje pode ser um a representá-lo, e amanhã outro, sem que se quebre o funcionamento do que é impessoal, mediado. As modalidades de negociação que se impõem são diversas nos dois campos – o urbano e o rural.

Discutimos, em outro texto de Guerra[4], no que consiste o êxodo enquanto problema econômico e social. E enquanto experiência vivencial, em que consiste o fugir da seca? O ser expulso da terra? O ser obrigado a vendê-la para cobrir os custos de tratamento de saúde de um parente próximo? Quantas histórias de vidas desestruturadas podem se contar na chegada de italianos, japoneses, alemães, poloneses, portugueses, espanhóis, árabes, turcos, açorianos, ucranianos, africanos, chineses, judeus, palestinos? Quanto custou, em termos de sofrimento, os quatro capítulos sobre a mão de obra da Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado (1982)[5]. Quanto se poderia acrescentar às cifras do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do ouro, da borracha, da pecuária, das drogas do sertão, do cacau, do algodão, das 10 laranjas, do café, se contadas às separações, as longas viagens, as mortes por insalubridade dos caminhos, pela fome, pelo cansaço?

Quanto de débito não pago tem ainda no haver dos bóias-frias, dos sem-terra, dos sem teto, dos desempregados estruturais? Com quantos fios de arame e caixas de bala se faz a ocupação dos latifúndios improdutivos?

Com quantas ausências de escolas se faz a ignorância que mantém na passividade e dominação a legião de danados da terra?

E por que eles erram pelo mundo, em busca de pão e trabalho? Poderíamos se quiséssemos demonstrar isso não apenas em números, porque as pessoas são muito mais do que algarismos...



[1] GUERRA, G. A. D. Êxodos e dispersão dos camponeses no Brasil. Movendo idéias. VI, n. 9. Belém, CESA/UNAMA, julho de 2001b. 47-52.

[2] ASSARÉ, Patativa do. Cante lá eu que eu canto cá. Petrópolis, Vozes, 1978.

[3] GUERRA, G. A. D. O Posseiro da Fronteira. Belém, Universidade Federal do Pará, 2001.

[4] GUERRA, G. A. D. O Posseiro da Fronteira. Belém, Universidade Federal do Pará, 2001.

[5] FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Ed. Nacional, 1982

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